terça-feira, 22 de abril de 2008

POR QUE NÂO QUEBRAMOS O NOSSO SCRIPT?

Conheço algumas pessoas que nunca na vida andaram de ônibus. Uma delas me confessou que nunca viajou de avião que não tenha sido na primeira classe. Hotéis? Sempre, sempre os de cinco, ou mais, estrelas. Muitas dessas pessoas em nenhum momento sentiram a falta de dinheiro e nem tiveram a preocupação de atrasar contas, ou temer não ter dinheiro para comprar comida.

Conheço também pessoas que passaram toda a vida sem nunca ter experimentado o sentimento amoroso. Não amaram, não foram amadas, nem mesmo os prazeres e a efemeridade do sexo puderam provar. Assim como esses exemplos, muitos de nós navegam em raias unidirecionais, sem desviar, sem que haja em nenhum momento uma transgressão na rota férrea traçada por algum demiurgo perverso, dentro ou fora de nós mesmos. Alguns por toda vida, outros por um tempo, seguimos uma órbita própria monotonal, cruzando outras tantas órbitas mas sem nem mesmo as tocar.

Há muitos e muitos anos fui preso por minha militância no movimento estudantil. Depois de interrogatórios sempre sendo tratado com cordialidade e humanitarismo, fui transferido de uma prisão para outra. Dentro do camburão, ainda todo dolorido e apavorado pelo que tinha passado, encapuzado e algemado, tive o meu primeiro insight dos universos paralelos. Era um fim de semana típico do verão carioca. O camburão parou num sinal de trânsito. Ao nosso lado um carro de passeio com uma família em direção à praia. As crianças brigavam disputando de quem seria a bóia, a mãe reclamava que precisava de um novo maiô, mas o clima era de festa, tipo vamos a la playa. Ali ao lado deles a menos de dois metros de distância estava outro ser humano, humilhado, imerso na profunda dupla escuridão, sem saber para onde iria e se um dia voltaria a ver o sol e a praia, sozinho, isolado e sua órbita prisional.

Claro que nesse caso específico eles não estavam me vendo, mas a visão também é muito relativa. Ver apenas, não significa enxergar o outro em seu universo, muito menos significa partilhar universos. Às vezes fico imaginando esses meus amigos que nunca viajaram de ônibus, como enxergam seus funcionários quando estes dizem que o ônibus atrasou, ou que estava superlotado, ou ainda que demorou duas horas até chegar no seu destino? Não enxergam. Acredito que para eles deve soar meio ficcional, distante como a lua: sabem da sua existência mas nunca irão lá, é real e ao mesmo tempo virtual.

Órbita pessoal

Muitas pessoas passam a vida presas a essa órbita pessoal e intransferível, sem chance de tocar ou trocar de roteiros. Ser prisioneiro de um universo monosignificativo, é como passar a vida tocando o samba de uma nota só, ou ver a realidade apenas em azul, ou em amarelo, ou em pink. São sempre as mesmas lamentações, as mesmas dores, as mesmas pessoas - nada muda, nem as alegrias são diversificadas, todas têm sempre o mesmo sabor. Ser prisioneiro de um universo que não penetra outros é como irmãos que casam com irmãos para manter a descendência em família. Degeneração, empobrecimento genético, psicológico, físico, etc.

Mas como fazer para mudar de órbita só para variar? O conselho de um antigo mestre ainda é perfeito e aplicável: mude uma peça da fileira de dominós, uma única peça. Pode ser um novo corte de cabelo, a mudança do estilo de vestir, a quebra (ainda que momentânea) da rotina diária, puxar conversa com o vizinho com quem nunca falou, pegar um ônibus e ir até alguma cidade onde jamais foi, passear sem rumo e depois voltar. Há muitas maneiras, mas todas extremamente difíceis de serem postas em prática, sempre haverá um “mas...”.

Muitos prisioneiros lamentam a sua sorte, o seu destino. Uns lamentam a bordo de seu carro importado, outros de dentro de seu quarto e sala. Mas raros são os que estão dispostos a mudar o corte de cabelo. Não há garantias de que se mudar algo no roteiro irá lhe trazer coisas muito boas. Você poderá ser assaltado nesse ônibus, poderá ser chamado de ridículo pelo seu namorado que irá odiar seu novo visual, o risco é inerente à quebra do script. Não mudar porém, permanecer fiel a essa órbita é perder irremediavelmente a miríade de possibilidades que a vida oferece.

por Roberto Goldkorn in “Outro Lado – Um outro jeito de enxergar o cotidiano”


2 comentários:

Bits & Bytes disse...

Agradeço por tocar minh'alma com simples e sábias palavras. Realmente mudar algo por mais insignificante que seja é difícil... mas vou tentar!! Forte abraço!

Paulo Henrique disse...

Otimo blog. voltarei constantemente...

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